Ah… esse olhar

jack2

Era uma quarta feira e o dia havia sido terrível. Frenético, bruto, humilhante e um tanto quanto sarcástico. O metrô parô. No meio do nada. Fétido, brutalmente lotado, abafado, desconfortável, impune, barulhento. Uma voz anasalada e anêmica anuncia uma falha elétrica. Naquele buraco, amparado por múltiplos contatos humanos indesejados, lembrava dos fatos de alguns minutos atrás. A cobrança desmedida, o stress da cidade grande, a arrogância e desumanidade do mundo acadêmico, a aridez das relações. Tudo havia convergido para a manhã daquela quarta feira e a memória movia reprises intermináveis de todas as cenas miseráveis. O metrô voltou a se mover, brutalmente, é claro. Comportamento animalesco, truculência e odores azedos até chegar no terminal. Lá, inicia-se mais algumas horas de estrada e mais estrada… O ambiente melhorou, agora estava quase habitável. As longas horas tornaram-se reminiscências de todos os tipos. Cenários de raiva, ódio, tristeza e até alegria, invadiram a memória e ocorrências somáticas trouxeram os realismos das divagações.

No meio, exatamente no meio, do turbilhão nauseante de todas as sensações do dia e das divagações, algo irrompe a história, o tempo e o espaço e desrespeita as leis da natureza. Um olhar. Um olhar que anuncia e apresenta a aurora de um sorriso estarrecedor. Imaculado e enigmático. O suor ainda lubrificava o desconforto do metrô, a raiva e a decepção do dia… O corpo ainda sentia a canseira infecunda da loucura daquele dia. A mente cansada… e aquele sorriso. Um silêncio aconteceu, como daqueles que acontecem em segundos entre o fim de um concerto e o aplauso eufórico do público. Aquele mesmo silêncio, a mesma euforia, um concerto perfeito havia acontecido, efetivamente. Um conserto, eu diria. Apenas um sorriso…

Um tempo se passou após o encontro Epifânio. A calmaria já havia se acomodado, tranquilidade, o suor havia dado lugar a aromas suaves, a brutalidade a uma delicadeza cristalina. Silêncio e serenidade sussurravam uma doce e lenta reflexão… Como a vida é boa! Vivi muitas coisas, tive algumas aventuras, uma desilusão aqui outra ali, uns tantos constrangimentos, pequenas alegrias, enfim, tantas experiências de todos os tipos… Uma variedade incrível. A mim, contudo, uma coisa se destacava. Havia um padrão em meu comportamento. Prefiro pensar, uma certa coesão. Quando tive raiva, agi com raiva, quando fiquei triste, chorei com tristeza, quando fiquei feliz, sorri, quando fiquei desesperado, fugi, quando fiquei descontente, fui embora… E então que me dei conta. Naquele instante em que aconteceu dentro de mim aquele silêncio, muito mais coisas aconteceram. A raiva virou fumaça, a tristeza, força e a alegria se multiplicou. E foi então que percebi, naqueles segundos daquele olhar, o lugar que eu quis ficar pra sempre.

Aquele olhar precedeu um sorriso que não me embriaga, que não me traz a amnésia das dificuldades e tristezas da vida, mas que me da força e companhia pra vivê-las. Aquele foi um olhar que pode derreter o ódio e a raiva, pode acolher, que pode multiplicar as alegrias. Um olhar que faz entender que as coisas são difíceis, que muitas vezes as coisas serão diferentes do que queremos, que mostra a efemeridade de realizações pequenas, que faz da simplicidade o berço da bondade, que acusa, que perdoa, um olhar que beija e acaricia… Um olhar que não nega minha coesão, mas a consolida com um magnetismo irreversível. Torna meio o que era fim, e o fim… a atemporalidade. Um olhar que procurei a vida toda e que me encontrou. Um olhar que… O olhar que me amou… o olhar que amei… o olhar… da minha mulher.

Sobre Juka

Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se não o fizerem ali?
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